Esmeralda é “meiguinha e reguila” e “tem saudades do paizinho” ‘adoptivo’. Este vai ser defendido pelo procurador-geral adjunto no Tribunal Constitucional.
Meiguinha e reguila”, Esmeralda deu ao 1.º sargento Luís Gomes e à mulher, Maria Adelina Lagarto, algumas noites mal dormidas. Desde a primeira hora, eles tratam-na por Ana Filipa. Mudaram-lhe as fraldas, deram-lhe biberão, preocuparam-se com a sua educação. Esperam agora, até Fevereiro, uma decisão do Tribunal Constitucional (TC) sobre a legitimidade para recorrer da sentença do Tribunal de Torres Novas que, em Julho de 2004, atribuiu o poder paternal ao pai biológico, Baltazar Nunes. Entretanto, o Ministério Público junto do TC, composto pelos procuradores-gerais adjuntos Luís Bonina e Carlos Rego, manifestou já que “os detentores da guarda de facto têm legitimidade para recorrer da decisão” e que qualquer interpretação em contrário “é inconstitucional”. Esmeralda vive desde os três meses plenamente integrada na família Gomes. Com a prisão do militar, em meados de Dezembro, o quotidiano alterou-se. “A menina tem saudades do paizinho”, conta a madrinha, Célia Gomes. Esmeralda tem na prima Bruna, de dois anos e meio, uma companheira favorita de brincadeiras. Alegre e com muita vida, é fã da ‘Floribella’ e dos desenhos animados do ‘Ruca’. E adora ir para a cozinha com Maria Adelina fazer bolos de chocolate.Nenhuma destas experiências pôde Baltazar Nunes proporcionar à filha que só viu em duas ocasiões, uma das quais na realização dos testes de ADN. Desde que, em Julho de 2002, manifestou ao Ministério Público o desejo de assumir a paternidade, iniciou uma luta para conviver com Esmeralda, mas a família Gomes nunca lhe permitiu o contacto, nem quando lhe bateu à porta com um urso de peluche.A menina, de sorriso maroto e cabelos lisos castanhos como os seus olhos vivos, passou o último Natal em Frei João, no concelho de Mação. “É muito apegada à família e gosta de nos ver todos juntos”, afirma a madrinha. A ausência de Luís Gomes é explicada com simplicidade: “Dizem-lhe que não vai a casa porque está longe a trabalhar”, conta a advogada do casal, Sara Cabeleira. “É uma criança saudável, esperta e feliz”, acrescenta.A batalha jurídica de que Esmeralda continua refém está agora no Tribunal Constitucional. Vai decidir se Luís Gomes e Maria Adelina têm legitimidade para recorrer da sentença de poder paternal. O Ministério Público já deu o seu parecer ao TC: considera que o casal deve poder recorrer. Se assim for, o caso voltará à estaca zero. Baltazar soube da gravidez de Aidida Porto no fim da gestação, mas achou que a criança não era dele. Quando a brasileira voltou a procurá--lo, manteve a posição. Mas quando começou a investigação de paternidade, tudo mudou. “Nem que seja a última coisa que faço, ela um dia virá para junto de mim”, disse ao CM.Os diversos despachos de juízes que determinam a entrega de Esmeralda a Baltazar – incluindo a sentença de poder paternal em que o juiz Domingos Mira diz que “tem de ser assegurado à Esmeralda o direito a ser criada pelos pais biológicos” – nunca foram acatados pelo sargento Luís Gomes nem por Maria Adelina. Isto deu origem ao segundo processo judicial, aquele que acusou o militar de sequestro e levou à sua condenação. Um grupo de cidadãos, incluindo juristas de reconhecido prestígio, prepara um pedido de ‘habeas corpus’ para libertar Luís Gomes.
NOVE JUÍZES DECIDIRAM NO CASO
Esmeralda Porto tem decisões de pelo menos nove juízes. A sentença que atribui o poder paternal a Baltazar Nunes é assinada por Domingos Mira, em Torres Novas. Quando Luís Gomes e a mulher reclamaram para a Relação de Coimbra, o presidente do tribunal não lhes deu razão. A reclamação seria atendida no Tribunal Constitucional por Carlos Oliveira, Maria Helena Brito e Rui Moura Ramos. Já os despachos que determinam a entrega judicial de Esmeralda a Baltazar, são de Domigos Mira e Sílvia Pires. Quanto à pronúncia de Luís Gomes por sequestro, assina Francisco Timóteo. E o acórdão que condenou o militar por esse crime, esta semana, foi elaborado por Fernanda Ventura, José Joaquim Carneiro e Sílvia Pires.PASSOU NATAL EM FAMÍLIAA madrinha da menina, Célia Gomes, que vive em Frei João, Mação, recorda a última visita de Ana Filipa – é assim que tratam Esmeralda – à aldeia. “Ela veio cá passar o Natal com a Adelina e juntámo-nos todos em casa dos meus sogros [pais do sargento Luís Gomes]. Foi muito engraçado, porque ela é uma criança muito faladora e esteve a noite toda a meter conversa com os tios e a prima, de dois anos e meio.” Célia Gomes diz que não voltou a ver a cunhada nem a afilhada desde essa altura e acrescenta que, mesmo que soubesse onde estão, não diria. “A vinda da menina para esta família foi um aconchego para todos, porque não havia nenhum netinho. Além disso, a forma como tudo decorreu – a mãe não a poder criar e entregá-la para adopção – deixou em todos nós a sensação de estarmos a salvar uma criança de um futuro incerto, dando-lhe um lar e uma família que gosta muito dela”, conta Célia Gomes, enquanto limpa os olhos, molhados pelas lágrimas. “Sabe, eu tenho outra afilhada que é minha sobrinha de sangue, mas gosto das duas de forma igual e tenho muitas saudades do sorriso maroto daquela menina, que é muito especial para todos nós”, adiantou. Os pais do sargento Gomes foram visitá-lo ontem à tarde ao Presídio Militar de Tomar. "TIRANDO A PARTE LEGAL FEZ O QUE UM PAI FARIA"Os familiares de Baltazar Nunes remetem-se agora ao silêncio, por conselho do advogado e para evitar que a vida de cada um seja falada a toda a hora na praça pública. “Já nem podemos ir ao café que não se fala de outra coisa”, disse ontem um irmão de Baltazar Nunes, que falou ao CM à porta de casa, em Cabeçudo, enquanto esperava a chegada da mãe, Esmeralda Nunes, que tinha ido às compras à Sertã. Devido a esse silêncio, foi impossível confirmar se os pais de Baltazar maltrataram ou não Aidida Porto Rui, a mãe biológica de Esmeralda, quando ela lhes foi pedir ajuda, poucos dias antes de entregar a filha a Adelina e Luís Gomes, como adiantou uma lojista de Vila de Rei. Foi esta mulher, que não quer ser identificada, que apresentou as duas ‘mães’ e esteve presente no dia em que o casal Gomes foi buscar a bebé. Nessa altura, Aidida Porto Rui fazia limpezas em dois consultórios médicos, em Vila de Rei e na Sertã. Vivia com muitas dificuldades, que a filha veio complicar, obrigando-a a “arranjar uma alternativa”, como disse na altura. “Só o fez por desespero, ninguém dá um filho de ânimo leve, não duvido que lhe custou muitíssimo”, disse a amiga da Sertã, que entregou a menina a Adelina e Luís Gomes, e também não quer ser identificada. As duas mulheres apoiam a decisão do casal e afirmam: “Tirando a parte legal, fez o que qualquer pai faria.”
"TRATAMO-LA COMO FILHA BIOLÓGICA"“É uma decisão que deve ser muito ponderada e não pode ser tomada de ânimo leve”, disseram Luís Gomes e Maria Adelina Lagarto, numa entrevista ao CM, em Outubro de 2004, já depois de saberem que o poder paternal sobre Esmeralda Porto tinha sido atribuído a Baltazar Nunes. O casal dizia-se determinado a defender “o melhor para a menina”, pois considerava que a mudança para junto do pai provocaria uma “perturbação emocional grave” e indesejável. À espera da tramitação dos recursos, explicaram o momento em que acolheram a menor: “Preocupámo-nos com ela. Íamos deixar a mãe abandoná-la? A relação que ela tem connosco é de pais e filha. É muito apegada a nós e aos avós. Tratamo-la como uma filha biológica, nem mais nem menos”."NÃO HOUVE SEQUESTRO" (Rui Pereira, Penalista)“O crime de sequestro só se verifica quando existe privação da liberdade. Implica que a criança seja retirada de forma ilegal da esfera em que vive e impedida de voltar. Não é o caso. Em abstracto, a recusa da entrega de uma criança a quem tem sobre ela o poder paternal é um crime de subtracção de menor.” "DEVASTADOR PARA A MENINA" (Luís Villas-Boas, Psicólogo clínico)“Arrancar esta criança do ambiente em que está é um rapto emocional. Seria devastador para a menina. Originaria um prognóstico dramático e danos irreversíveis. Parece-me desejável a libertação [do sargento Luís Gomes] e caminhar-se no sentido de uma adopção restrita, em que o casal exerce o poder paternal e o pai biológico mantém o contacto.”
OS CINCO ANOS DA VIDA DE ESMERALDA12/02/2002 Às 11h17,
na Sertã, nasce Esmeralda Porto, fruto de relação fortuita entre a brasileira Aidida Porto Rui e Baltazar Nunes. Ele sabe da gravidez no fim da gestação e diz que a criança não é sua. Aidida regista-a como filha de pai incógnito.28/05/2002 Esmeralda é entregue pela mãe ao casal Luís Gomes e Maria Adelina Lagarto. Aidida, em situação ilegal no País, diz que não tem dinheiro para criar a filha. O contacto entre as duas partes é feito através de duas amigas comuns em Vila de Rei.JULHO 2002 Baltazar Nunes diz ao Ministério Público que quer criar Esmeralda se os testes de ADN confirmarem ser ele o pai. A menina tem cinco meses. O MP iniciou investigação de paternidade por indicação da Conservatória do Registo Civil da Sertã.OUTUBRO 2002 Realizam-se os testes de paternidade no Instituto de Medicina Legal de Coimbra. Além de Baltazar Nunes e Aidida Porto, comparecem o sargento Luís Gomes e a mulher, Maria Adelina, com a menina, que passaram a tratar por Ana Filipa.JANEIRO 2003 Resultado do teste indica que Baltazar é o pai. Luís Gomes e a mulher candidatam-se à adopção no Tribunal e na Segurança Social. Baltazar perfilha Esmeralda em Fevereiro e em Março começa processo de regulação do poder paternal. 13/07/2004 Sentença do Tribunal de Torres Novas atribui poder paternal a Baltazar Nunes. Em Março, a Segurança Social de Santarém tinha iniciado um processo de confiança judicial a Luís Gomes e mulher, com vista à adopção de Esmeralda, que foi suspenso.16/01/2007 Luís Gomes e a mulher recorrem da sentença de poder paternal, mas o recurso é rejeitado. Tribunal Constitucional vai decidir. Recusam-se a entregar Esmeralda. É aberto processo-crime. A 16 de Janeiro, Luís Gomes é condenado por sequestro.
Cláudio Garcia / Isabel Jordão, Leiria